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  • Writer's pictureTheodora

Antes que seja tarde




funeral


Antes

acreditava sabê-la,

senti-la, sorvê-la.

Dizia

tocá-la

no espelho,

mas mentia:

Podia me surpreender

quase sem querer, mas seria

assim,

de golpe.


O peso das

pedras agora

é perfume

forte de amante

que espreita

a cada curva, em cada

sombra em

cada dia meu

sangue prenhe

do último momento

a cada segundo

flertando

com meias-vozes e

falsos sorrisos.



Canção

Lembro duma noite

em que você me disse:

‘eu te amo.’ Contém

amianto. Não respire a poeira. Consulte

as instruções do catálogo.

Mas não há nada

parecido com um catálogo

do mundo.

Também me lembro de como

você me perguntou porque, diabos,

eu perdia tempo odiando a cor amarela.

No fim das contas eu nunca

sei nada sobre ninguém. Não existe

tempo, apenas espaço.

Uma teia de aranha

tatuada na mão significa

a lembrança de um comparsa,

de um cúmplice morto. Talvez

eu também te ame.



Sem ao menos apagar a luz

sinto os azulejos frios

sob minhas costas

quadrados brancos

e coloridos

de tamanhos

diferentes

ao meu redor

caos: um

computador e roupas

limpas e sujas

livros (um zohar,

uma coletânea de poesia polonesa e livros

sobre obstetrícia) e ainda

uma garrafa de vodca barata e uma

caixa de remédios- na verdade são três:

benzodiazepínicos, antidepressivos e

um chá

que veio da índia

(feito de folhas de limão,

com aroma agradável e um leve

um leve sabor cítrico)

adormeço sem ao

menos apagar a luz

sinto os azulejos

frios

Com a boca seca

leio poemas chineses traduzidos

para o esloveno e novamente

traduzidos para o espanhol: nunca

o meu idioma, nunca em

mim: é tanta tristeza

que eu podia escrever

dez, mil, um milhão

ou até todos os poemas

sobre nada.


Os artistas da fome

Talvez seja tarde:

dois corpos

quase em inanição.

Tantas fomes

diferentes,

dois animais –

que se recusam a comer –

se acasalam

num campo de concentração:

minhas costelas e as tuas;

meus mortos e os teus.


Luci Rivka



Luci Rivka nasceu em 1986 em Curitiba e hoje vive em Fortaleza. Judia e transgenero, é poeta tradutora e idichista, além de ser a mente por trás da editora Dybbuk. Colaborou na edição passada da Theodora com traduções dos poemas de Priscila Merizzio.

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