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Foto: Ska Batista

Oregon

 

        Oregon apareceu numa tarde cinza pouco antes do inverno. Vestia preto da cabeça aos pés. Batom cereja. Anéis fininhos, de prata, exibindo uma magreza da qual tive inveja. A minha obrigação era preencher a ficha de inscrição dos candidatos ao posto de  voluntário e pedir duas referências. Me senti intimidada e apenas perguntei ​​porquê queria o trabalho e de onde era aquele sotaque. Respondeu sem demonstrar qualquer empolgação. Esta era a senha: agradecer e dispensar candidatos, mas trai o script. Falei que estava tudo certo e caso tivesse alguma dúvida, me ligasse. 

        Não houve nenhum telefonema. Oregon chegou para o seu primeiro dia sem o nervosismo das estreias. Dominando vasos de porcelana chinesa, sedas e caixas registradoras. Um estranhamento me atravessou. Naquela noite de domingo, sonhei que meus dentes caiam enquanto podava uma glicínia no sítio da minha avó.

       Eu gerenciava uma loja de caridade que vendia coisas sofisticadas de segunda mão. Objetos doados por famílias ricas, com crianças criadas por babás filipinas, férias de esqui em Gstaad e passagens de primeira classe. Gente de olhar cordial que joga, sem qualquer culpa,  os “mortais” para o outro lado do muro. Eram desses doadores abastados que Oregon gostava. Isso ficou claro no nosso terceiro encontro quando ignorou Marli, a atendente do café vizinho, para conversar com Paul O’Sullivan. Paul era um doador irlandês que, durante seis meses, fez a festa de Oregon, com sua coleção de arte decorativa francesa, do século 19.

            

           Soube por Oregon que as peças foram colecionadas pela mulher dele, morta havia dois anos. Aos poucos, os objetos iam sendo transferidos para a loja em pequenos lotes. Desconfio que, ao passo que a paquera entre o viúvo e Oregon se desenvolvia, mais doações chegavam. 

          Um dia Paul apareceu próximo do final do expediente e Oregon pediu para sair mais cedo. No caminho de volta, vi os dois jantando no Annie, o bistrô da esquina. Me senti um lixo. Talvez quisesse estar ali no lugar do viúvo ou no lugar de Oregon. Na verdade, não fazia diferença. Eu apenas queria estar. Peguei o metrô e quando levantei uma mancha de sangue marcava o meu lugar. Não menstruava há cinco meses. Aquele sangue escuro, velho, escoava a minha ira sem qualquer cerimônia, num dia de verão, onde amantes trocariam saliva e gozo em lençóis cheirando à lavanda ou recém saídos do varal. Quando cheguei em casa, notei que não trocava a roupa de cama havia dois meses. 

     

       Oregon não embolsava nenhum centavo para passar os domingos na loja. Aposto se preciso fosse, pagaria por aquele tempo. Os olhos violetas viravam duas estrelinhas quando engatava conversa com os doadores que tinham mais do que uma conta obesa no banco. “Dinheiro sem conhecimento não vale nada”, dizia. Oregon entendia de ópera, literatura e chapelaria. Tinha origem dinamarquesa. E nunca me contou se tinha outra ocupação. Um dia perguntei o que fazia para pagar as contas. Respondeu: “isto fica em privado”. Engoli a seco e fui fumar um cigarro para processar meu descontentamento. Ao final de cada trago, meus dentes trincavam. Minha boca parecia a de um lobo amedrontado diante do cano frio do caçador.

 

         As tardes de domingo eram as mais imprevisíveis. Oregon me ignorava de uma maneira polida que despertava a minha curiosidade. Algumas vezes me peguei no caminho de volta para casa pensando se Oregon preferia gin ou vodka, se dormia sem roupa, se criava um gato. Adorava observar as mãos de Oregon a lustrar uma bandeja de prata. Pareciam tulipas suspensas no ar. Ninguém pegava numa vassoura com tamanha elegância. No outono, antes de abrir a loja, Oregon colocava Maria Callas na vitrola e varria para o canto as folhas do carvalho que antes atrapalhavam a entrada. Depois as juntava num vaso transparente na mesinha da vitrine. Oregon também arrumava os lenços de seda em perfeição e fazia cara de desgosto quando eu organizava a estante de livros antigos. 

 

        Um dia cheguei com atraso e encontrei um bilhete por debaixo da porta: Estou sem internet e tive que dar um pulo aqui para te dizer que vou faltar. Tive que viajar de última hora. Desculpa. Bom domingo. O. 

       Soube depois o motivo pelo qual tinha me deixado na mão.  Uma voluntária me contou. “Encontrei Oregon e o senhor irlandês numa exposição da Royal Academy of Arts, no domingo passado.” A moça ficou chateada porque Oregon não a cumprimentou no museu. Desconversei como se quisesse me enganar. "Acho que não te viu. Oregon é muito gentil. Não combina com esse tipo de comportamento". Pensei um milhão de vezes em comentar o fato com Oregon. Mas sempre me faltava o último empurrão. 

 

          Lembro que certa vez chegou com duas horas de atraso. Pediu desculpas e seguiu direto para o banheiro. Reapareceu quinze minutos depois. Estava diferente. Os olhos sem brilho, os ombros encolhidos, a boca murcha. Congelada entre casacos, candelabros e espelhos, parecia o manequim da vitrine. A minha vontade era fechar a loja e oferecer um colo, um uísque, quem sabe a minha alma. O sofrimento de Oregon não era de folhetim. Era seco e, sobretudo, desconcertante. Um corpo naquele estado só poderia estar sofrendo um luto. Mais tarde, Oregon me contou sobre o fim abrupto do noivado com o viúvo irlandês Paul O’Sullivan. “Ele me trocou pela amiga da filha, uma bailarina austríaca, que tem a idade da filha dele.”  

       

         Oregon me contava passagens da sua vida quando a loja estava vazia. A humilhação no centro de imigração de Harmondsworth quando chegou a Londres. A decepção de não ter conseguido fazer parte do corpo de baile do English Ballet. O suicídio do irmão aos 14 anos. O processo arrastado pelas autoridades britânicas para o reconhecimento formal da sua identidade.  Preferia falar das dores a conta-gotas. A partilha da intimidade não podia ser nada que cheirasse ao conforto barato dos medíocres, muito menos dos pobres.

  

       Seu afeto nutria-se no mundo das coisas materiais. Excêntricas. O coração de Oregon quase enfarta de alegria quando recebeu a doação de uma mala antiga Goyard com cinco casacos mink. Disse com voz pausada e esnobe: “esse deve ter sido usado no Vienna Staatsoper. Aquele outro no Lincoln Center. E esse aqui... na Opéra National de Paris.” Naquele mundo, não cabia a vulgaridade das coisas banais. Talvez por isso, nunca tenha me perguntado sobre quem eu era.

         Pouco antes do natal, consegui um trabalho melhor numa livraria em Marylebone. Fiquei na dúvida se aceitava. Os encontros com Oregon teriam um ponto final. Eu precisava pagar um empréstimo do cartão de crédito no Brasil e assim terminei aceitando. Não tive coragem de me despedir. Apenas falei, muito obrigada, te vejo domingo. 

 

         Passaram-se 6 anos até o dia em que nos reencontramos durante um intervalo de uma peça no foyer do Old Vic Theatre. Oregon demorou a me reconhecer. Não penso que tenha sido apenas o meu cabelo descolorido máquina 3, a gravata esmeralda, o blazer de riscas, o tórax reconstruído. Talvez a maneira alegre do meu cumprimento tenha surpreendido Oregon. Trocamos perguntas rotineiras e comentamos sobre a impecável interpretação da Claire Foy. Oregon, então, me perguntou se eu não queria tomar um drink no Soho. Logo depois, Duda chegou – “desculpa mon amour a fila do banheiro estava gigante”. Apresentei Duda a Oregon que sem graça pediu licença e sumiu como um cometa entre espelhos, cabeças e cortinas de veludo.

 

         Naquela noite, no exato momento em que Duda beijou a minha nuca, senti os dedos lânguidos de Oregon tocarem minhas costas. Fechei os olhos e lembrei da glicínia da minha avó. Diferente daquela sonhada por mim, quando conheci Oregon. A vegetação não precisava de poda. A flor era toda apogeu. Era a dona do violeta mais profundo de todos. Logo meu pensamento foi interrompido por Duda: “mon amour, aquela figura do teatro tinha os olhos iguais aos da Elizabeth Taylor.” Desconversei e fui fumar um cigarro na varanda. A fumaça refletida, nas luzes da madrugada, desenhava-se furta-cor. 

Manoella Valadares

Manoella Valadares é jornalista, contista e poeta. Já trabalhou na Folha de S. Paulo e colaborou com a revista Harper's Bazaar. Teve seu conto Angustura publicado na revista Continente e trabalha no seu primeiro livro de poesia. Nasceu no Recife e mora em Londres desde 2014.

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