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O OLHO BRANCO DE MEU TIO

 

           OLHO. REPARO num olho. Enorme. O outro é são e não mira nada. É preto, tão preto que não dá para ver a pupila. Atrai-me o olho cego, que parece tudo ver. Lembro: o globo ocular dilatado e leitoso reinava saltar fora do encaixe quando meu tio me passava um carão. Um tremor tomava minhas pernas, meu rosto congelava. Curioso. Nas minhas manobras para driblar a vigilância dele, era o olho branco que me acompanhava enquanto o bom se detinha num ponto qualquer, além de si mesmo.

       No início, sonhava à noite com ele e me assombrava. O olho branco riscado pelo vermelho das veias crescia e cobria o outro, centralizando-se no meio da testa. Eu dava um grito que cortava o silêncio da casa e era o meu tio ciclope que me sacudia enquanto eu gritava mais, até que o olho branco se recolhia e o preto retomava seu lugar. 

             Ficou louco, menino? perguntava o meu tio, o olho branco me fuzilando.

 

            Dizem que nasceu assim. Na infância, as crianças o evitavam, nunca o chamavam para brincar. Os irmãos lhe batiam a troco de nada, talvez por causa do olho branco que os incomodava. Quando foi se fazendo homem, não encontrava garota que quisesse lhe namorar. 

 

           Meu tio envelheceu sem ninguém. Ao contrário do que poderia se esperar, ele não é um homem rancoroso, mal-humorado. Costuma ser generoso com os mendigos que lhe batem à porta. Muitos deles, tolos, saem correndo quando são recebidos.  

 

        Pais e irmãos já não os tem. Restaram parentes tão distantes que nem vale a pena incluí-los nos laços sanguíneos. Percebo essa conclusão e essa angústia quando penetro o olho branco do meu tio através do espelho em que ele se barbeia. Um traço melancólico de esperança de que seja próximo o dia em que o mar de leite de seu olho se ofereça como possibilidade de itinerário para o fim do seu mundo, fechando-se de vez. Meu coração descompassa, eu suo frio. Meu tio me olha, vê o que vejo e seu corpo é sacudido por um choro seco, inaudível, sem lágrimas.

            Antônio Mariano

 

 

Antônio Mariano nasceu em João Pessoa. Foi colunista do jornal paraibano A União por 5 Anos. Mais tarde editou 13 números do Correio das Artes, suplemento literário desta mesma publicação. É autor de, entre outros, Guarda-chuvas esquecidos (poemas. Lamparina Editora, 2005), Sob o Amor (poemas. Patuá, 2013) O dia em que comemos Maria Dulce (contos. Ficções, 2015) e Entrevamento (romance. Kotter Editorial, 2021). 

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