Inspirações Maskanvas
“A alma de uma flor
é sua renúncia a eternidade
Que morram as flores de plástico
Dizendo de outro modo:
A alma de uma flor
é sua renúncia a eternidade
Que vivam
as flores
de plástico”
Estávamos no segundo lockdown em São Paulo, estávamos angustiados com aquela quantidade enorme e crescente de pessoas morrendo diariamente de covid-19 e a impossibilidade de poder velá-las em presença de corpos. Não é a vida que nos faz humanos, mas sim o fato de podermos transcendê-la. Isso me fez lembrar do meu pai nos últimos dias de 1999, quando ele estava para morrer aos seus 69 anos, e eu nos meus 27 concorrendo a uma vaga de residente médico nos EUA. Passei um mês com ele no sítio Catolé em Juazeiro do Norte no Ceará. Esse sítio foi do meu avô e agora pertence a minha irmã. Tem coisas que ficam em família, outras que se libertam dela. Em novembro de 1999, eu sabia que meu pai ia morrer em poucas semanas de câncer de próstata metastático, assim como em fevereiro de 2021 eu sabia que em poucos meses centenas de milhares de corpos portadores de coronavírus iriam se libertar da condição de gente.
Me despedi do meu pai ainda em vida, e perguntei: "você quer que eu fique?” a resposta dele foi: "Davi, eu tive uma ótima vida atrás de mim. Eu quero que você tenha uma excelente vida a sua frente. Não fique, vá construir seus sonhos"... foi o último dia que o vi. Ele morreu e eu não pude voltar para o velório. Lembrei disso e quis fazer um projeto de esperança. Mas como ter esperança no presente com tanta coisa horrível acontecendo: a necropolítica, a morte da natureza, a ausência de encontros, e tantas pessoas desaparecendo em isolamento, que como eu tinham perdido os seus? Pensei então que o que meu pai tinha dito era que a esperança dele estava no futuro de outros corpos, e isso me trouxe a certeza que no limite o futuro sempre são os outros.
Então comecei a fazer arte sobre máscaras descartáveis inspiradas em meus amigos e as trocava por encontros. Os encontros podiam ser na rua, num jardim, ou onde a pessoa presenteada preferisse desde que fossem presenciais. Queria viver o encontro como experiência de vida, assim pensei a máscara como signo da presença e que se opusesse ao negacionismo amplificador de mortes que vivíamos tão exacerbadamente no Brasil, e também em tantos outros lugares do mundo.
Chamei esta aventura de Maskanvas, pois foi sobre máscaras transformadas em telas que pintei encontros futuros com pessoas queridas. Houve 285 encontros. Neles, trocava a Maskanvas feita unicamente para a pessoa presenteada por fotografias delas. Foram tantos registros que não cabem no cartão de memória. Só os corações dão conta de tanta informação. Às vezes, estou caminhando pela rua e figuras me atravessam como se fossem déjà vu. Acho que isso acontece porque após convidar alguém para um Encontro Maskanvas, o que vinha logo depois era esperar por uma inspiração. Geralmente as musas vinham voando, outras vezes se escondiam pelo caminho, quase sempre surgindo quando menos esperadas. Podia ser algo que escutasse, ou algo que ao bater na retina fazia aparecer na mente a pessoa inspiradora. A partir daí eu começava, fabricando ou desconstruindo esse algo até criar a obra. Quando se tem a singularidade de cada pessoa como musa, as possibilidades de variação são infinitas. E hoje quando revejo ou escuto esses "algos" me lembro nitidamente das pessoas e suas Maskanvas, e recordo vividamente do nosso encontro.
Os encontros sempre foram a alma do Maskanvas. Inicialmente pensei em realizá-los sem nenhum registro. Do ponto de vista artístico, as máscaras personalizadas já seriam obras. O fato delas serem descartáveis reforçava o sentido de efemeridade que eu buscava enfatizar. Assim, elas não valeriam mais do que a experiência de troca mutuamente vivida. Entretanto, essa questão da troca me inquietava, pois o movimento de doação estava muito assimétrico - eu dava a Maskanvas e a pessoa ia ficar pensando: por que o Davi me deu esta máscara pintada? O que ele quer de volta, estou em dívida com ele? Talvez esse pensamento concreto não viesse a passar por todas as cabeças que iriam vestir Maskanvas. Porém, a leitura prévia de “O dom da dádiva" de Marcel Mauss me alertava que “dar, receber e retribuir” são inerentes às relações humanas e constitutivos das culturas.
Enquanto o projeto ainda estava em gestação, mas já pronto para nascer, visitei uma exposição da fotógrafa Margaret Schwartz no Instituto Moreira Sales. Tirei “selfies” do meu reflexo produzido pelo vidro das molduras nos lindos retratos que ela produziu. A fotografia já era algo que eu tinha familiaridade. Em 2020, no início da pandemia, fiz conjuntamente com meu amigo Domenico Salas um trabalho com fotos tiradas com o celular que se mostraram surpreendentemente boas, inclusive para grandes ampliações. Ao sair da exposição, decidi trocar as Maskavas por retratos que faria dos presenteados, em um ensaio fotográfico durante nosso encontro. A ideia era enviar os retratos para eles como lembrança através da conta de instagram @davi.delacerda que criei para esse fim. Assim, ao dar a máscara, receber da pessoa sua imagem, e retribuir-lhe com seus retratos não haveria dívidas, e consequentemente consumaríamos o encontro em si mesmo, e ambos conservaríamos um vestígio do momento passado juntos.
Estava finalizando minha segunda graduação em Ciências Sociais, como todo mundo me virava com imersões virtualizadas desde o começo da pandemia. Havia acabado de ler os cursos sobre estética de Hegel, que pensam a arte por uma perspectiva histórica. Muito pode ser criticado sobre sua abordagem e conclusões, incluindo sua hierarquização eurocêntrica das artes, ou a noção de que as esculturas gregas materializaríam universalmente o sublime no mundo grego, caracterizando um perfeito acoplamento entre conteúdo e forma. Neste meu trabalho artístico cujo espírito é o encontro, meus objetivos estavam longe da representação do absoluto. Eu queria simplesmente criar algo que desse forma à essencialidade dos encontros nas trocas afetivas, e que fosse sinal da presença. E eu queria que esse algo simbolizasse o respeito aos corpos e a vida. Assim, elegi máscaras como signo desse respeito.
Passei a trabalhar o Maskanvas como um emaranhado de pequenas subversões semânticas. A máscara descartável, equipamento visto como separador e que deve ser continuamente substituída, torna-se objeto de desejo que foge ao destino de lixo e passa a criar proximidades que não são primordialmente físicas, mas sim profundamente afetivas. Da mesma forma, as Maskanvas revelam muito mais do que escondem, e os registros dos encontros que possibilitaram criam narrativas ficcionais que podem escapar de tudo, menos do próprio encontro.
Na caixa de Pandora, junto com todos os males está a esperança. Eu esperava poder ter entregue cada Maskanvas criada aos seus respectivos destinatários. Mas junto com a esperança estavam também todas as impossibilidades. Houve 26 pessoas que aceitaram meu convite, e para as quais produzi Maskanvas que por uma razão ou outra não foi possível entregá-las, apesar de grandes esforços da minha parte. Umas nunca achavam tempo para o encontro, outras não respondiam mais as mensagens, outras já não estavam mais em São Paulo. Ouvi por terceiros que algumas pessoas percebiam no projeto um movimento subversivo. Houve também quem que não queria ter suas imagens expostas, já que além do encontro eu trocava a Maskanvas por um ensaio fotográfico. Em raras situacoes desconfiei que a recusa tinha um fundo homofóbico. Houve ainda quem marcou e não apareceu no encontro.
O desafio de recriar um destino esperançoso permaneceu junto com todas aquelas Maskanvas recusadas. Decidi então criar a partir delas obras que fossem símbolo da ausência mas que mantivessem o espírito da esperança. De um destino individual e pessoal passei a uma entrega coletiva. Vendemos 25 dessas obras, transformando o dinheiro lucrado em ações de combate à fome e ajuda a pessoas em situação de rua. Uma dessas Maskanvas não foi posta à venda, virou sorteio e festa. Vão-se os males, resta a esperança.
Davi de Lacerda
Davi de Lacerda, 50 anos, nasceu em Fortaleza, é formado em Medicina (1998) e Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, fez residência em Dermatologia no Hospital Johns Hopkins. Vive em São Paulo. É fotógrafo e artista plástico independente, cuja atividade se intensificou marcadamente durante a pandemia.